Mês da Consciência Negra, pra quê te quero?

Carla Torres

Mês da Consciência Negra, pra quê te quero?

Em geral, eu teço todo um raciocínio em meus textos, para, ao final, desenhar uma resposta às provocações dos títulos. Mas hoje eu já vou responder de cara: Te quero, novembro, para furar DE VEZ minha bolha branca. Nunca serei um corpo negro. Não importa o que eu faça, os laços que tenha. Nada nunca vai me dar a dimensão do que seja ser um humano negro e viver suas respectivas circunstâncias em um mundo racista. Em um mundo em que consequentemente tematizar o racismo é e seguirá sendo uma necessidade diária por muito tempo. 

Todos vivemos em bolhas ou algo que se assemelha a isto. E muito se tem dito sobre bolhas político-partidárias, mas não é delas que falo. A bolha branca é também política, mas em sentido mais amplo. Nela é relativamente confortável de se viver. O máximo da discriminação que me aconteceu foi ser ridicularizada em meio a homens falando de acessórios para automóveis num estabelecimento, ou ser apontada como “pobre demais” por um garçom em um restaurante de Porto Alegre, ou ainda – num outro extremo – em um certo ambiente de trabalho, ser considerada “vaidosa demais” (e termos afins) para ser respeitada pela minha capacidade intelectual. 

Na loja de acessórios, eu entendi exatamente do que falavam, captei os deboches e constatei que estava sendo enganada, pois havia estudado muito bem o produto pelo qual procurava. Expus o ridículo da situação, apontando o que tecnicamente comprovava a perna que queriam me passar, e comprei o equipamento na loja concorrente. No restaurante, do alto de minhas alpargatas jeans e de meu casaquinho de acrílico puído, olhei fixamente o rapaz que me disse que o prato seria “caro demais” para “uma pessoa como eu”, fiz o pedido na minha comanda para mim e minha amiga e passei o cartão à vista ao final da noite sem olhar mais na cara do infeliz. Naquele mês, fiquei ferrada, pois vivia com uma bolsa de doutorado e dividia apartamento com várias pessoas para poder manter as contas, mas saí daquele restaurante com o nariz no teto. No ambiente de trabalho tóxico, eu percebia claramente o assédio moral como uma consequência da infelicidade das pessoas envolvidas e lamentava pela sua amargura. Tinha até pena. 

Mas sinceramente não sei como responderia a alguém que me apontasse pela cor de minha pele, como acontece com as pessoas negras. A cor da pele não é como dados técnicos sobre os quais se consegue dialogar no mesmo nível de machistas de plantão; não é como a roupa considerada “surrada demais” ou “elegante demais”. A pele, maior órgão de nosso corpo, não é algo que se porta ou se veste, é algo que se é. Juro que tento há muito tempo imaginar a dor sentida a partir de um ataque do tipo e não consigo ter a dimensão. Claro, alguém pode dizer que fui atacada sobretudo pela inerente condição de ser mulher, seja aparentemente pobre ou “perua”. Mas não sou mulher negra. Como exercício, pessoas brancas, convido a imaginarmos uma mulher negra em todas as mesmas situações que narrei. Conseguem ter noção do grau de violência psicológica que todos os mesmos cenários poderiam causar neste ser humano?  Não, né? Nem eu. 

Assim é com a repercussão do ataque ao cantor Seu Jorge, em Porto Alegre, do qual inclusive já falei neste espaço. Acontece que, numa reviravolta que considero como o mínimo da retratação, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou a Medalha do Mérito Farroupilha ao artista. Pois, com toda a problematização que o fato já teve, ainda há pessoas que atribuem o MESMO PESO ao crime de racismo do qual o artista foi vítima e ao que seria uma violação de cláusula de contrato por parte de Seu Jorge, caso ele tivesse (ou tenha) feito o famigerado “L” no show daquela noite no Grêmio Náutico União. Não, não há o mesmo peso entre uma coisa e outra e, repito, NADA JUSTIFICA CRIME DE RACISMO.

O tema e a necessidade de sermos antirracistas reverberou nos últimos dias, seja em Jogo de Cintura, ao lado da advogada, professora, coach e coordenadora do Polo EAD da ULBRA em Santa Maria, Deborá Evangelista, seja no Companhia CDN desse domingo, dia 13, quando entrevistei o ativista social antirracista, artista, agitador cultural e sociólogo em formação na UFSM, Gustavo Rocha, o Afro Guga. Grita na rica programação do Mês da Consciência Negra de Santa Maria. As discussões têm seu auge em novembro, marcado pela morte do líder Zumbi num trágico dia 20 deste mês no longínquo ano de 1695. Mas um mês não basta. É preciso que cada vez mais introduzam-se esses temas no nosso cotidiano branco. Se o mês é da Consciência Negra, de empoderamento e fortalecimento da negritude, a vida inteira precisa ser de reflexão sobre tudo aquilo que nós, brancos, naturalizamos. Quando lembro a polêmica frase de Morgan Freeman – “No dia em que pararmos de nos preocupar com Consciência Negra, Amarela ou Branca e nos preocuparmos com Consciência Humana, o racismo desaparece” – penso que talvez o ator estivesse a vislumbrar o que seria o ideal de humanidade, mas até lá temos muito a melhorar.

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